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domingo, 12 de abril de 2020

O silêncio que aos poucos vai deixando de nos incomodar

Passa um carro solitário que, perturba o silêncio das ruas de Arronches, ao qual nos vamos habituando. Espaçadamente as pessoas vão-se abastecer aos supermercados. Lá vai um ou outro. Sem filas, mas com a necessidade de voltar o quando antes ao recolhimento da sua casa.Uma idosa assoma à sua porta. Nada vê senão o silêncio da sua rua, ainda há pouco animada. Talvez venha à porta para respirar um pouco do ar puro, de uma vila que à falta de grandes industrias não foi poluída. Talvez na esperança de ver também à porta a sua vizinha, com quem todos os dias falava das suas maleitas. Pois é vizinha as dores não me deixam. Tive uma noite horrível. É uma utente habitual do centro de saúde, onde vai quase todas as segundas-feiras, na esperança de ter uma semana melhor. Agora, no confinamento da sua humilde casa, recorre às ‘mézinhas’, como se tratavam os males antigamente. 
Os mais novos, desta geração das tecnologias, fazem as suas obrigações escolares. Pela tarde com os phones dos seus smartphones nos ouvidos, dão o seu passeio. Um, quando muito dois, passam à minha porta, aqui mesmo junto à ribeira. Mas também um ou outro idoso faz, embora por menos tempo, o seu passeio higiénico.
Tenho um local privilegiado para poder observar a vida que rola a um ritmo confrangedor, mesmo que nós alentejanos, tenhamos a fama de fazer tudo lentamente. Agora o tempo dá-nos mais tempo, para pudermos desfrutar de alguma forma destas ínfimas coisas.
Aqui mesmo aos meus pés, corre a Ribeira de Arronches. Uma vez turbulenta com as chuvas que têm caído, por vezes abundantes. Quer-nos lembrar que a natureza que o Homem não respeita e que vai transformando o Mundo para pior, cumpre os seus ciclos. Nem sempre é Inverno quando deve ser, e o Verão cada vez se prolonga mais. Mas a ribeira por vezes corre de mansinho, num sussurro que nos acalma o stress que porventura possa surgir. 
Também os pássaros em plena Primavera nos alegram com o seu chilrear. Olho para os borregos nos pequenos terrenos, onde este ano, o olhar de uma mãe me parece querer dizer “este ano não me levam o meu filho, porque a Páscoa vai ser diferente”. Mal sabe o animal que a vida continua, que nos campos estão os agricultores e os produtores dos géneros que nos fazem falta no dia-a-dia da nossa alimentação enquanto seres humanos, mesmo numa pandemia. São eles - muitas vezes injustamente criticados -, que estão na frente da ‘guerra’ de produzir para alimentar Portugal. 
Estamos na Primavera. Hoje é domingo de Páscoa. A Igreja vê-se privada dos seus fiéis. Não repicam os sinos, não vão eles incomodar o silêncio da Vila de Arronches. Amanhã era o tradicional dia de celebrar a Páscoa. Juntavam-se as famílias e amigos ao longo do Rio Caia à sua passagem pelo Baldio. Vamos ser inventivos, como povo que damos cartas nesse capítulo. Vamos celebrar a Páscoa em casa, no quintal, ou na horta… se o tempo o permitir. Vamos usar as novas tecnologias para estarmos presentes com os nossos familiares.
Há no entanto a nossa pequena (grande) frente de batalha. Aqueles que zelam por nós. As forças de segurança, os profissionais da saúde na ULS, nas instituições. Os bombeiros e os autarcas atentos para que a ’Forte Arronches’ possa enfrentar mais esta batalha. Uma mais, como aquelas que enfrentou contra os castelhanos, quando a queriam invadir, como um 'vírus'.
Nós os idosos, temos a capacidade de muitas vezes esquecer o passado recente e termos a visão nítida, do passado distante no tempo. Recordo outros tempos difíceis do pós II Guerra Mundial. Contava-me a minha avô sobre o racionamento, como adoçava com um rebuçado o café de cevada, feito na chocolateira no crepitar do lume que ardia na chaminé. Ardia porque o meu pai, todos os dias lhe dava 25 tostões para ir ao tio Luís da carvoaria, comprar um feixe de lenha, o cisco ou o picão. Tudo isto para que o neto, sentado no mocho dentro da grande chaminé, pudesse estar aquecido e perder o olhar nas labaredas que o transportavam em sonhos de fantasia de uma criança. Bem longe desta realidade que hoje vivemos e que mais parece uma cena de um filme de ficção mas, infelizmente, é uma realidade à escala global.
Uma coisa tenho a certeza: O sol vai nascer em algum lugar todos os dias. Vamos ter um futuro, nem que seja de forma diferente.